Passaram-se dois dias e o grupo de aventureiros consegue (após mais encontros com diversos grupos de aranhas monstruosas, para o desgosto e asco de Cedrick) abandonar a floresta guiado pelas habilidades ímpares de Aluriel e Shambala.
“Eu, a partir de hoje, sigo SEMPRE pelas estradas comerciais apesar dos homens-rato, ladrões e dragões ou o que seja.”
“Pare de reclamar, Cedrick!” Falam a elfa e Balsaraph (já quase esquecendo o incidente com o incêndio na floresta). E se o belo tigre branco pudesse falar, com certeza ele também teria se juntado ao coro.
“Não estou reclamando! Só quero dizer que prefiro enfrentar mantícoras assassinas a vermes de oito patas e….”
Antes que o guerreiro continue a tentar se explicar, todos (talvez exceto Balsaraph) são atordoados pela presença de um gigantesco cânion com suas paredes sinuosas e abruptamente escavadas e, muito além deste, outra visão aterradora: um céu ominoso, nuvens negras e arroxeadas carregadas com o que pode apenas ser chuva não-natural. Um vento frio e sibilante enregela os ossos de todos. Aluriel sente o corpo quente (e arrepiado) de Shambala tocando suas pernas em busca de conforto e ela passa sua mão carinhosa no pêlo eriçado de seu amigo.
Todos se entreolham.
“Mas que tipo de magia é essa, Bal?” Cedrick pergunta enquanto aponta para o fenômeno celeste macabro.
Um relâmpago avermelhado estrondosamente corta o céu no local apontado pelo guerreiro como que em resposta a sua pergunta.
“Naquele local, sob aquele céu, está nosso destino.” Responde o tiefling. “Dizem os livros antigos que este fenômeno climático era uma constante no auge do império dos Tieflords (como eram chamados os tieflings na antiguidade). ‘Os céus de Vor-Vagral chovem sangue e chamas como uma benção de nossos patronos’ dizia um dos textos.” Balsaraph fala mais para si que para os outros, como se forçasse sua mente a recordar os detalhes de seus estudos.
Shambala rosna mostrando sua inquietude.
“Todos nós sentimos a mesma coisa, Sham.” O tigre se acalma e lambe a mão da elfa.
“Tudo bem, mas ainda não chegamos lá. Temos ainda este cânion para atravessar e isso levaria (sem mais empecilhos), pelo menos, mais três dias. Acho que seus cálculos sobre o tempo de viagem estavam errados, Bal.” Raciocina o humano.
“Nem tanto. Conheço um meio mais rápido de atravessá-lo. Sigam-me!” Diz confiante o bruxo.
Cedrick e Aluriel se entreolham desconfiados.
XXX
Poucas horas de caminhada circundando os limites do cânion e o grupo se depara com um paredão rochoso e, aparentemente, não nenhum outro meio de prosseguir.
Um vento agourento sopra do vale ao lado.
“Espere… Eu posso sentir a magia neste lugar.” A elfa olha ao redor, procurando a fonte mágica.
A sensibilidade arcana dos elfos é impressionante pensa Balsaraph.
“E você está certa, minha cara. Esta é a entrada para Argonast.”
“Argonast?” Aluriel usa um tom de reconhecimento.
“Você já ouviu sobre este local, Luri?”
“Sim, Cedrick. Eu sei sobre os Magos de Argonast. O local tem este nome por conta de seu fundador, um poderoso mago humano. Ele pregava a neutralidade e é renomado por ter criado um potentíssimo feitiço: As chamas abascantes de Argonast.”
“E com elas é possível anular temporária ou definitivamente as propriedades mágicas de um objeto ou os poderes mágicos de alguém.” Completa o bruxo.
“Certo, esta conversa é muito instrutiva mas como entramos neste lugar maravilhoso?” Zomba o guerreiro bem mais acostumado com a ação (contanto que esta ação não envolva aranhas).
O tiefling, algo irritado pela falta de respeito de Cedrick, murmura um encantamento.
Símbolos e runas de cor púrpura brilham e, na superfície rochosa anteriormente intransponível, uma passagem semicircular surge revelando um túnel escuro.
“Depois de vocês.” O bruxo faz uma mesura exagerada e acena para seus companheiros entrarem.
“Como você possivelmente poderia saber como entrar aqui, Bal?” É Aluriel que está incrédula.
“Digamos que eu tenha… contatos aqui.”
Ao atravessarem o pórtico, esperando encontrar câmaras talhadas na rocha, eles são surpreendidos por uma miríade de plataformas flutuando em um vazio negro. Cada uma das plataformas possui um espelho prateado do tamanho de um elfo adulto pendurado em uma parede invisível. Várias delas possuem estantes cheias de livros e pergaminhos. Outras são ocupadas por seres de raças e espécies inimagináveis (com tentáculos por mãos, ou asas por braços ou até com mais de uma cabeça). A entrada pelo rochedo leva a uma dessas plataformas.
Repentinamente uma forte lufada de vento é sentida e o farfalhar de asas é ouvido.
Um ser colossal com a forma de uma serpente com asas de pássaro e mostrando uma mandíbula poderosa cheia de dentes como os de um lobo.
“Bem vindos a Argonast.” A criatura fala num tom monótono mas amistoso e cortês. “Sintam-se honrados pois são poucos os mortais que ainda visitam nosso santuário.”
Todos fazem mesuras.
“Eu me chamo Quetzal e serei seu transporte aqui já que fui informado que nenhum de vocês pode voar ou se teleportar, como a maioria de nossos visitantes.”
A criatura alada pousa na plataforma onde está o grupo e deixa suas costas à mostra para que subam nela.
O tiefling é o primeiro a se aproximar de Quetzal. Ele olha para os outros. “Vamos. É seguro e ele é confiável. Minha amiga aqui o enviou.”
“O tiefling fala a verdade. Eu não lhes ofereço nenhum perigo e Lady Lorelei me enviou assim que soube de sua chegada.”
Todos resolvem subir, apesar de Aluriel ter que convencer Shambala a confiar também.
No dorso de Quetzal, eles ainda observam mais e mais coisas maravilhosas e indescritíveis. Eles se aproximam de uma plataforma mais simples em comparação com as outras. Uma mulher humana belíssima vem recebê-los quando eles pousam no local após dispensar Quetzal com um afago no focinho. Ela usa trajes (mínimos) azulados e tem cabelos longos e negros. Aluriel sente imenso poder emanando dela mas o que mais incomoda a caçadora élfica é o modo como Cedrick olha pra ela.
“Lorelei Spellbreaker. Um prazer vê-la novamente.”
“Balsaraph. Da última vez que nos falamos,” Ela olha discretamente para o espelho prateado. “você me disse que viria sozinho. Quem são seus amigos?” Ela questiona num sorriso.
“Eu sou Cedrick.” O guerreiro toma a frente antes mesmo de seu amigo tiefling o apresentar. A elfa revira os olhos. “Esta é Aluriel e seu amigo Shambala.”
Mesmo começando a odiar a maga, Aluriel ainda é uma elfa de Silver Glades muito bem educada e faz um movimento lento com a cabeça, cumprimentando a humana.
“Imagino que estejam cansados da viagem. Podem descansar aqui enquanto ainda podem pois não sabemos quando nós descansaremos de novo.”
“Nós?” Pergunta a elfa olhando do bruxo ao sorridente guerreiro.
“Sim. Eu irei com vocês, caçadora.”
XXX
Cedrick é o primeiro a acordar. Apesar de não haver nenhum luxo (ou sequer camas) na plataforma flutuante, todos tiveram um sono confortável e reparador. O guerreiro nota sobre uma pequena mesa vinda de lugar nenhum um carneiro assado, frutas e vinho de ótima qualidade. Ele pega uma maça e um pouco de vinho e se dirige à maga que ele vê sentada em um banquinho em frente ao espelho prateado.
“Bom dia!” Ele fala, se aproximando.
“Bem, aqui dentro é difícil saber se é dia ou noite, mas ‘Bom dia’, bravo guerreiro.” Ela está sorrindo.
O humano não consegue visibilizar direito, mas imagens passam em grande velocidade na superfície do espelho mágico. Notando a curiosidade do jovem, a maga explica.
“Um espelho visionário. Muito útil se você sabe como utilizá-lo. Foi assim que eu contatei Balsaraph no momento em que Vor-Vagral emergiu após o terremoto.”
“Pode me mostrar Vor-Vagral?”
“Sim” Ela faz um movimento com as mãos. “Mas não consigo ver nada além dos limites externos da cidade. Mesmo após milênios de sua destruição, os encantamentos protetores ainda são muito eficazes impedindo perscrutações mágicas ou teleportes.”
Cedrick já consegue ver a arquitetura da cidade. Tijolos e paralelepípedos avermelhados, ossos pontiagudos carbonizados nas paredes, grandes piras agora apagadas e vários pontos chamuscados nas construções. A luz violeta do céu dá uma tonalidade doentia à cidade, mas mesmo assim Cedrick percebe que este local não era pequeno e nem pouco importante.
“Fico feliz de uma maga nos acompanhar num lugar como este.”
Ela sorri mas não responde nada.
XXX
Depois de se alimentarem e agradecerem a hospitalidade recebida, chega a hora da partida.
A maga desenha um enorme pentagrama no chão, acende incensos e velas especiais. Profere um encantamento e todos são instantaneamente transportados para um dos limites de Vor-Vagral.
“Observem a glória do império de Bael-Turath!” Ela diz assim que chegam. Nem mesmo Balsaraph estava totalmente preparado para a visão ante o grupo. O cânion foi deixado para trás num literal passe de mágica e a sua frente a majestosa cidade (mesmo destruída, ela é majestosa) se assoma.
“Tomem cuidado. Demônios e outros males inomináveis ainda podem estar percorrendo estes corredores.”
Mal o tiefling os adverte e um relâmpago vermelho como sangue atinge duas estátuas nas proximidades.
Dois gigantes e corpulentos demônios de pedra tomam vida. Asas se abrem e músculos em séculos de paralisia angustiante se retesam e se acostumam com a nova animação mágica; garras afiadas que já cortaram milhares de gargantas brilham na luminosidade violácea do céu: Gárgulas.
Os dois monstros recém animados são o tipo de terror que este lugar reserva. Começam a voar, seus olhos brilham com o vício da matança e eles mergulham em direção do grupo de aventureiros. Essa é toda a boa vinda que Cedrick espera receber deste local.
O guerreiro levanta seu escudo e um pequeno campo de força protege a todos das investidas iniciais dos monstros. Eles não têm nenhum ponto onde se esconder locados entre duas encostas rochosas irregulares.
“Eu não vou aguentar por muito tempo!”
“Separem-se! Somos presas mais fáceis todos juntos aqui!” Grita a elfa, enquanto sae do campo protetor criado pelo amigo humano e começa agilmente a escalar uma das paredes laterais juntamente com Shambala.
Balsaraph vai para o outro lado, conjura seu manto de chamas ao redor de si e começa a formular seu próximo feitiço na sua mente.
Lorelei permanece no seu lugar e se concentra. Suas mãos começam a emitir uma estranha luz violeta.
Uma das gárgulas continua atacando o guerreiro (protegendo apenas a maga agora); a outra escolhe atacar o tiefling já que a elfa sumiu nas encostas.
Cedrick abaixa seu escudo e Caliburn se incendeia e golpeia a criatura. É como golpear rocha sólida e a gárgula parece não sofrer nenhum dano.
Relâmpagos-flecha atingem a mesma gárgula que atacou Cedrick também sem nenhum efeito evidente. Shambala escala ainda mais a encosta e procura o ponto perfeito de ataque.
Bal termina seu novo feitiço e começa a cuspir um jato de fogo semelhante a uma baforada de dragão vermelho (apesar de logicamente menos potente). A gárgula parece sentir o ataque e fica mais irritada.
Lorelei ainda mantém sua concentração.
O guerreiro defende mais um ataque mirado em sua garganta. “Luri! Me dê cobertura aqui!”
Outra flecha de relâmpago atinge a gárgula sem o intuito de causar dano, mas tentando distraí-la. E funciona. Virando a atenção para o ataque da elfa escondida nas encostas, a criatura baixa sua guarda e tem a espada do humano atravessada em um dos seus flancos. Urrando de dor, ela se afasta do humano, alçando vôo mais alto. Shambala já tendo preparado seu ataque, pula no dorso da criatura que não suporta o peso do grande felino e se choca contra a parede, sendo reduzida a pó rochoso.
Balsaraph não tem tanta sorte e é agarrado pela gárgula que, ignorando seu manto de fogo, sobe com ele alto ao céu violeta.
“BAL?!” grita o humano.
Lorelei termina seu encantamento e aponta para a gárgula agarrando o bruxo. “Pelas chamas abascantes de Argonast!” Chamas púrpuras explodem de suas mãos e atingem a gárgula.
O monstro de pedra não entende o que houve. Não consegue fazer mais nada, seu corpo se enrijece e se estilhaça em mil pedaços.
Bal está em queda livre e desesperado.
“Llaf rehtaef” lança a maga, o tiefling desacelera no ar e chega incólume ao solo.
“Obrigado, Lorelei.” Agradece o bruxo.
“Todos estão bem?” pergunta o guerreiro.
“Sim.” Todos respondem.
Aluriel desce da encosta com o tigre branco. “Isso foi só o começo, eu imagino.”
“Certamente.” Diz a maga. “Vamos prosseguir.”
A elfa deixa a Lorelei seguir na frente com Cedrick e fala apenas para o tiefling.
“Eu não confio nela.”
“Não seja ridícula, Luri. Ela está nos ajudando.” E ele segue seus amigos na frente.
A elfa olha ao redor mais uma vez e outro relâmpago vermelho corta os céus. “Vamos, Sham. Não vamos deixar eles sozinhos com ela.”
Continua…