Pesadelos de uma Noite de Inverno – Parte III

Dezessete de Dezembro de 2009. Boston. 11h00 a.m.

O detetive Alvez, dedicado como todo bom sagitariano, é o primeiro a chegar na cena do crime. A cena do novo crime. Parque Olmsted. O parque também faz parte do Colar de Esmeraldas em Boston. Richard esfrega suas mãos, uma na outra, tentando afastar o frio do início da manhã, quando olha para os céus e dá um sorriso.
Wonder Amazon está montada no seu mítico cavalo alado, juntamente com um rapaz de sobretudo vermelho (o detetive nunca confirmaria isso, mas ele está com ciúmes). Um outro rapaz, mais velho e com uma espécie de armadura metálica fina, desce voando. O detetive também sente o efêmero cheiro de sândalo no momento em que uma mulher linda (mesmo com seus seis braços e a pele azul) se teleporta. Os heróis do IST.
“Olá, detetive Alvez. Estes são True Shot Jack, Duplo-Etéreo e Kali.” A heroína grega os apresenta assim que desmonta Pegasus. “O que aconteceu?”

“Prazer em conhecê-los. Bem, outro assassinato. Outro jovem rapaz, um policial desta vez. Encontramos o distintivo dele na neve próximo ao seu corpo.” E ele aponta para uma lona cobrindo uma massa disforme no chão. “James Rogers, 22 anos, solteiro
e morava sozinho. Hoje seria o aniversário dele. Uma pena mesmo.”

Wonder Amazon olha para o rosto sério do detetive e não sabe dizer se esta seriedade é raiva ou impotência de agir contra o
inimigo desconhecido. Ela se aproxima dele e coloca a mão em seu ombro com solidariedade (e carinho). “Nós vamos encontrar quem ou o que cometeu esta atrocidade, Richard.”

Richard se esquece da cena do crime, do corpo aos seus pés, se esquece do frio enregelante que faz, se esquece de tudo quando seus olhos encontram os da heroína.
Ele volta à realidade com o pigarrear de True Shot Jack.

“O que mais você sabe sobre o rapaz?” O pistoleiro pergunta.

“Bem, conversei hoje de manhã cedo com seu chefe e ele me disse que o Sr. Rogers tinha ido investigar uma ocorrência no Hospital Geral de Massachusetts. Um tal Dr. Cassels fez o chamado.”

“E o corpo?”

“Bem, Wonder Amazon, eu não sou legista, mas…” E ele levanta a lona cobrindo o que restou do rapaz. A impressão que todos têm é de que a caixa torácica do rapaz foi aberta como se abre uma fruta madura. O cheiro agridoce de sangue fresco ainda é perfeitamente notado e a cena toda de neve e sangue vivo lembra Wonder Amazon das obras alvo-rubras de Louis Pavageau.
A heroína grega se agacha mais próximo. Em nenhum momento ela demonstrou asco ou sequer levou a mão ao rosto pelo horror da cena. As amazonas são acostumadas com a morte, mas as mortes honradas e heróicas, e não há nada de honrado ou heróico em morrer assim, ela pensa. “O coração foi retirado. E veja no antebraço direito.” Ela aponta. “O mesmo círculo de invocação encontrado nos dois outros rapazes assassinados, bem como as marcas de queimaduras.”

“E o qual nosso próximo passo?” O herói brasileiro pergunta.

“Você e True Shot Jack vão ao hospital e tentam descobrir algo sobre esse Dr. Cassels. Eu e Kali vamos ficar aqui um pouco mais. Encontramos vocês depois.”

Eu prefiro ficar com a Wonder Amazon.

“Certo. Tá pronto pra voar cowboy?”

“Hum?!”

E sem mais delongas, Duplo-Etéreo ganha os céus e leva consigo seu amigo num laço telecinético.

O celular de Richard toca, ele pede licença e se afasta. Quando as duas estão sozinhas, Kali fala:

“Anne? Eu sei o que você quer que eu faça, mas da última vez que eu tentei expandir meus poderes, eu mal conseguia me teleportar direito por uns dois dias.” A heroína hindu sussurra. Kali e Wonder Amazon são muito amigas e ambas conhecem suas identidades civis. “Esse massacre é digno de um deus sedento.” Diz o avatar da deusa da morte hindu. “Kali em sua forma plena costuma exigir este tipo de oferenda de seus seguidores, os thugs. Tenho medo de invocar esta parte da deusa se eu tentar fazer isso em alguém morto.”

“Eu sei, Kalima, mas nós não temos muitas alternativas, eu creio. Não se esqueça! Você NÃO é Kali, a deusa da morte! Você é a ‘parte’ da deusa que é justa e misericordiosa e protetora, além de ser uma das super-heroínas mais poderosas que eu conheço.” Ela diz isso num sorriso, tentando acalmar a amiga.

“Está bem, você me convenceu como o de costume.” Ela retorna o sorriso e se ajoelha próximo ao corpo. Dois de seus seis braços se unem na posição Kali mudra do yoga, dois outros tocam suas têmporas em meditação e os dois restantes tocam os restos do pobre rapaz assassinado. Ela fecha os olhos e começa: “Om ya devi sarvabhutesu…”

Wonder Amazon se afasta e deixa sua amiga terminar o ritual, no entanto seus sentidos lhe advertem sobre algo: duas crianças curiosas estão atrás de um arbusto próximo, uma menina e um menino não aparentando mais de nove anos cada.

Eu pensei que Richard tivesse isolado a área de civis, ainda mais crianças. Ela pensa. “Crianças, vocês não devem ficar aqui, onde estão seus pais?” Ela se aproxima tentando se postar entre eles e a cena do crime.

“Eles estão logo ali, Wonder Amazon.” A menina de cabelos negros fala. “Eu queria só ver você de perto. Você é minha heroína favorita.”

“Obrigada, querida, mas aqui ocorreu algo terrível e não é para os olhares de vocês. Voltem para seus pais, por favor. Vou levá-los até eles.”

“Não precisa, eles estão aqui perto. Vamos, irmã.” O menino loiro rebate.

“Está bem, mas deixa eu te dar um presente.” A menina tira de um dos bolsos um raminho com pequenas flores brancas e as coloca em um dos segmentos da armadura da heroína. Ela abraça Wonder Amazon timidamente, corre com o irmão para longe e acena para a amazona.

Wonder Amazon é tirada de seus pensamentos pela voz do detetive.

“Era o Dr. Miller. Ele me disse que um dos itens achados na cena do crime dos dois rapazes era pelo de…” Ele olha num guardanapo algo que anotou. “… Capra hircus.”

“Um bode!” Ela diz, raciocinando.

“Exato. E a propósito, o que a sua amiga está fazendo? Ela não está autorizada a tocar no cadáver.”

“Ela está usando a sua própria força vital para tentar saber quem é o assassino. Se ela se esforçar, ela pode temporariamente ter o poder da psicometria e ‘ler’ eventos ou energias impressos em objetos. Fazer isso num objeto normal é perigoso e fazer isso num corpo pode acordar nela a sede de sangue da deusa de quem ela é o avatar. Ela basicamente está arriscando sua vida para que tenhamos mais informação. ‘Apenas’ isso.”

“Ah, ok então.” Responde o detetive, algo sem graça.

A amazona e o detetive chegam mais perto do avatar hindu.

“… kalirupena samsthita.” Kali continua. Poucos segundos depois, a heroína hindu é projetada para longe do corpo do jovem.

Atordoada, ela está tremendo no chão. Quando Wonder Amazon e o detetive Alvez se aproximam para ajudá-la, ela não consegue formar as palavras, tamanha é sua exaustão. Então ela toca nas frontes dos dois usando a telepatia para falar em seu lugar. Flashes de imagens passam rapidamente em suas mentes. Kali tenta colocar uma sequência nos pensamentos: O jovem policial chegando em um hospital na ala psiquiátrica, uma mulher de cabelos negros o surpreendendo, ele se sentindo pequeno e indefeso e não conseguindo falar, ele está no parque, é humano novamente, seu antebraço direito ardendo.

Ele morre logo em seguida, ver e sentir isso já foram o suficiente para mim. Não creio que vocês tenham defesas psíquicas para suportar o que eu suportei. Kali fala na mente deles e a visão termina.

“Medéia!” Wonder Amazon reconhece. “Filha de Aeetes e sobrinha de Circe. Perita em transmorfose e maldições. Da última vez que enfrentei Circe, foi necessário quase um batalhão inteiro de amazonas. As duas têm sangue divino, são descendentes diretas de Apollo.”

“Isso não é um bom sinal.” Diz o detetive. “Você não pode chamar mais heróis?”

“Não. Nós temos que ser o suficiente.” Responde a amazona resoluta. Essa é a primeira vez que Richard vê o olhar de guerreiro de Wonder Amazon e ele agradece estar do mesmo lado que a super-heroína.

XXX

Enquanto isso, no Hospital Geral de Massachusetts. 2h00 p.m.

Você não acha que essa roupa vai chamar muita atenção, Fabiano? Ela é suuuuuper discreta. A voz de André pode ser realmente irritante.

“Cala a boca, André!”

“Cara, você é um herói bem estranho.” O pistoleiro fala depois de ouvir pela décima vez o herói brasileiro falando aparentemente sozinho.

Os dois heróis estão no que, no inverno, costuma ser um verde e amplo gramado em frente ao hospital.

Viu? Por isso que eu queria que fosse a Wonder Amazon ao invés do cabeludinho aí.

“Eu trouxe uma muda de roupas, Jack.”

Poucos minutos depois, Duplo-Etéreo está com roupas civis e um jaleco médico.

“Você é médico?” True Shot pergunta.

“Ainda não, mas eu estudo medicina. De qualquer forma, eu acho que é melhor que eu procure o Dr. Cassels sozinho pra chamar menos atenção.” E também fica mais fácil pra gente arrumar um encontro com alguma enfermeira gata, né?

“Tudo bem, eu vou investigar os arredores.” O pistoleiro responde.

Os dois heróis tomam rumos diferentes.

True Shot Jack odeia esse frio todo. Ele andando e ocupando sua mente talvez ajude a esquecer um pouco dele.

Duplo-Etéreo se aproxima da entrada do hospital (um dos mais respeitados hospitais no mundo), puxa um documento qualquer, sugestiona a mente do guarda a acreditar que é um crachá de funcionário e entra tranquilamente no edifício.

“Bom dia, eu gostaria de saber onde encontro o Dr. Cassels.” Ele pergunta no balcão de informações.

“Deixe me ver… Sim, aqui está. Ele é responsável pela ala psiquiátrica, mas ele está de folga hoje. É o dia do seu aniversário.” A moça do balcão responde.

Aniversário? Muita coincidência, não acha, maninho?

“E você poderia me informar o endereço do Dr. Cassels?”

“É claro que não. Qual o seu nome mesmo?”

Bem, eu acho que ela vai querer falar isso pra gente do jeito difícil.

“Eu odeio fazer isso, mas…” Fabiano entra na mente da moça e a controla. Ela entra no computador e rapidamente consegue o endereço, o anota num papel e o entrega ao herói brasileiro. Fabiano apaga os últimos segundos da mente da moça e vai embora.

Já do lado de fora, Duplo-Etéreo faz um scan mental e acha seu aliado. E ele não está sozinho.

Já o vendo à distância, o pistoleiro está sentado num banco entre duas moças lindas vestindo jalecos.

Esse safado! Foi mais rápido que a gente! Hahaha.

“Tô vendo que você está ocupado.” Fabiano fala sério.

“Senhoritas, nos encontramos mais tarde.” O rapaz diz para as moças (uma médica e uma enfermeira, pela cor dos jalecos) quando elas se afastam aos sorrisos. “Sim, eu estava mesmo. Consegui ser convidado para uma festa de aniversário hoje e você não vai adivinhar quem é o aniversariante. Um tal de Patrick Cassels, você conhece?” Ele diz debochado.

Esse cara é bom. Fala André na mente do irmão.

Fabiano dá um sorriso e toca seu ponto auricular.

“Wonder Amazon, vamos investigar uma pista hoje à noite. Alguma novidade?”

“Sim, foi uma bruxa grega poderosa quem matou os rapazes. Ela se chama Medéia. Tomem cuidado e nos chamem se precisarem.”

XXX

11h00 p.m.

Jack e Fabiano se aproximam do local da festa. A casa é localizada em um dos clássicos bairros residências de Boston com casas belíssimas, lado a lado, muros baixos entre elas e um extenso gramado coberto de neve, árvores nuas cercam cada lado da rua. Eles batem na porta. Um rapaz obviamente embriagado abre a porta e pede para entrarem nem sequer perguntando seus nomes. Os heróis se entreolham e entram na casa lotada.

“Onde eu encontro Patrick Cassels?” O pistoleiro tenta perguntar para vários dos convidados.
Olha quanta mulher gata tem aqui, Fabiano.

“Foco, André. Te concentra pra gente fazer um scan psíquico.” Duplo-Etéreo fecha os olhos e o som do vozerio e da música alta são abafados.
É fácil entrar nas mentes dessas pessoas, ainda mais com a ajuda desinibidora do álcool. Os pensamentos superficiais deles são confusos e tangentes, e poucos realmente conhecem o aniversariante.
Fabiano, tem alguma coisa estranha. É difícil ver André preocupado e sério.

“É verdade. Há um ponto-cego na varredura psiônica. Alguém com um escudo mental.”

A bruxa!

“A bruxa!” Os dois irmãos pensam e falam ao mesmo tempo. Imediatamente, Fabiano liga seu ponto auricular.

“IST, a bruxa está aqui!”

DE, uma moça está levando o doutor para fora da casa e eu vou seguí-los.” Jack fala pelo ponto.

XXX

O médico também alcoolizado e cambaleante é puxado pelo braço por uma mulher de um corpo curvilíneo e escultural. Ela, coberta apenas por uma espécie de toga, o arrasta aos risos para uma parte mais escura do bairro, um descampado.

“Vamos, Patrick querido.” Ela diz.

“Mas a minha festa é pra lá.”

“Não se preocupe, vou fazer você esquecer da sua festa.” Ela estica a manga do rapaz e toca no antebraço direito. Ele urra de dor quando uma mandala com runas é gravada na sua pele.

“Venha, criatura tripla! A ser…”

“Isso não são modos de se tratar o dono da festa, dona.” True Shot Jack interrompe a concentração da bruxa e atira.

Um campo de força a protege da maior parte do dano do ataque, mas ela ainda é projetada para longe de sua vítima. Antes que ela consiga se recuperar, um pedregulho gigante é arremessado em sua direção e ela é soterrada.

Wonder Amazon surge em meio aos flocos de neve, limpando suas mãos de alguns poucos detritos de pedra.

“Bom trabalho, True Shot.”

Duplo-Etéreo chega voando ao local e Kali (com um ar exausto) é teleportada para perto.

“Dr. Cassels, você está bem?” A amazona pergunta.

“Meu-meu braço.. Argh!”

“Eu cuido disso.” O herói brasileiro puxa um kit de primeiros socorros e diminui a dor do médico com uma sugestão mental.

“Pessoal? Acho que temos uma moça irritada à nossa frente.” No momento em que Jack diz isso, o amontoado de pedras explode em mil fragmentos, libertando Medéia.

“COMO OUSAM? NÃO TEMEM A FÚRIA DE UMA SEMIDEUSA?”

“Jack, Duplo-Etéreo, distraiam-na!”
Sem pensar duas vezes e inspirados pela ordem de Wonder Amazon, o pistoleiro lança uma saraivada de tiros e os irmãos arremessam pequenos detritos na direção da feiticeira.

A amazona toca em seu broche para conjurar seu cavalo alado, porém é interrompida

pela heroína hindu.

“Se você chamar Pegasus, ela pode mais facilmente seguí-los. Eu posso teleportar o rapaz para longe dela.”

“Mas, Kalima. você não está em condições…”

“Nossa prioridade é a segurança dele.”

“Está bem, mas tente não se esforçar muito.”

Kali toca no rapaz (agora mais calmo) e ambos desaparecem.

“NÃO!! PARA ONDE ELE FOI?”

“Para longe de você, Medéia.” Wonder Amazon desafia.

“Estou farta de você e seus aliados, amazona. Vertere Anima!” E a bruxa aponta para os heróis.
True Shot Jack diminui de tamanho e é transformado em uma raposa-do-deserto. Duplo-Etéreo fica mais musculoso e transforma-se numa onça (metade pintada e metade negra). Wonder Amazon, com os braceletes cruzados em posição de defesa, permanece inalterada.

“Mas como você resistiu ao meu encanto?”

A heroína grega não responde, aproveita a vantagem da surpresa de Medéia e avança. Um soco seu despedaça o campo de força da bruxa e, com a outra mão, ela agarra o

pescoço da inimiga, dificultando a pronúncia de suas maldições.

“Como… argh… vo-você… resistiu?”

“Qual é o seu plano, Medéia? O que você está fazendo aqui?”

“Eu-eu… prefiro… argh.. fazer um… acordo.” Fala a bruxa na voz entrecortada de alguém que não consegue respirar adequadamente.

“Fale!” Comanda a amazona.

“Seus amigos… Sem a minha… argh.. ajuda… Eles ficarão assim… para… para sempre. Deixe-me… ir… E eu os li-libertarei… bem como.. não-não… farei mal algum.. ao curandeiro.”

“Dr. Cassels, você quer dizer.” A heroína olha para seus amigos metamorfoseados. “E como saberei que você não está mentindo?”

“Eu-eu juro… pelas… águas do.. Styx.”

A heroína larga o pescoço da bruxa que o massageia com uma das mãos.

“Um acordo é um acordo.” Ela aponta para os heróis transformados. “Finite Incantem.” E a maldição é cancelada. “Isso não acaba aqui, amazona. Ergo Portis Luntano” E ela se teleporta.
“Pode ter certeza que não, Medéia.”

Continua…