Pesadelos de uma Noite de Inverno – Parte I

Quatorze de Dezembro de 2009. Arboretum Arnold. 6h00 am.

“Sim, senhor, detetive Alvez. Eles foram mortos e devorados pelo que só podemos deduzir ser um grupo de animais selvagens.” O médico legista aventa uma hipótese. “Tenho que levar algumas amostras para o laboratório para tentar identificar as vítimas e os assassinos, mas que estas mortes são estranhas, elas são.” Ele reitera.

O Colar de Esmeraldas, como é chamado o gigantesco conjunto de nove parques contínuos locados em Boston – Massachusetts, mais precisamente o Arboretum Arnold, foi o palco deste terrível massacre: os corpos (o que restou deles, pelo menos) de duas pessoas foram encontrados por transeuntes que realizavam seu jogging matinal. As folhagens esparsas das árvores cobertas de neve agora estão quase que completamente manchadas por sangue e vísceras das vítimas ao lado de galhos quebrados e chão revirado numa cena grotesca e surrealista como um quadro de Salvador Dali.

“Obrigado, Dr. Miller. Não entendo porque me chamaram já que este crime não parece ser do meu departamento.” O detetive Richard Alvez é o responsável pela investigação sobrenatural e meta-humana do Departamento de Polícia de Boston. Católico e de origem latina, o jovem de trinta e dois anos acha seu trabalho importantíssimo e ele é bom nele.

Os Estados Unidos são foco constante de violência e crimes ditos ‘inexplicáveis e estranhos’, vilões superpoderosos e invasões alienígenas fazem agora tanto parte dos noticiários quanto o aquecimento global ou a crise no Oriento Médio, e uma ala na polícia para lidar com isso torna-se deveras relevante.

“Bem, Nós fomos chamados pelo Senhor Sargent, o diretor do parque, e ele nos informou que não há animais selvagens aqui, o que torna este crime também do seu departamento.”

“Certo, certo. Eu entrarei em contato.” O jovem policial acende um cigarro e amaldiçoa mentalmente quem ou o que quer que tenha cometido esta barbárie. Ele não se importa em acordar de madrugada. Ele não se importa em ter que dirigir até aqui com a neve já precipitando fortemente. Ele não se importa com os gritos histéricos e ultrajados do Sr. Sargent para que tudo seja resolvido logo. Mas ele se importa em descobrir quem causou isso e prender o culpado. É isso que lhe dá forças para continuar o seu trabalho.

Para sua sorte (e do resto do mundo) ele tem também uma aliada com superpoderes…

XXX

DP de Boston. 11h00 pm.

Após passar o dia inteiro interrogando criminosos (alguns dos quais tentaram roubar uma joalheria com raios desintegradores) e preenchendo os relatórios mais enfadonhos que lembra já ter preenchido nos últimos meses, o detetive Alvez recebe um telefonema.

“DP de Boston. Detetive Alvez falando.”

Alô, detetive? Aqui é o Dr. Gregory Miller. Nos conhecemos hoje de manhã.”

“Sim, claro, doutor. No Colar de Esmeraldas. Alguma novidade que não poderia ter esperado até amanhã?”

Bem, detetive, apenas os corações dos rapazes (sim, são dois rapazes) não foram encontrados nos corpos apesar de toda carnificina.” Ele soa bem preocupado. “Animais ‘normais’ teriam devorado tudo o que pudessem.”

“Claro, concordo. Onde posso lhe encontrar?”

Estou no instituto de criminalística de Harvard, mas, detetive, isso não é tudo.” Ele continua sombrio. “Ambos têm marcas recentes pelo corpo, uma espécie de círculo com símbolos. E digo mais, pela reação inflamatória aguda ao redor das lesões, posso dizer que elas foram feitas talvez pouco tempo antes de morrerem.”

Richard fica mudo por um tempo.

Detetive?

“Você me convenceu, doutor. Estou indo praí agora mesmo. Só mais uma coisa: posso levar uma amiga?”

XXX

Instituto de Criminalística de Harvard. 11h30 pm.

“Goetia.”

“Que diabos é isso?”

“É um ramo do ocultismo que lida com evocações e invocações de demônios.” Quem responde é a amiga do detetive, uma mulher belíssima (mesmo para os padrões de uma super-heroína) e emanando uma aura de liderança. “Foi muito tempo utilizada pelo Rei Salomão embora não seja atualmente limitada a conjurar anjos e demônios como Salomão a utilizava.” Ela continua.

Abençoada pelos deuses gregos (a maioria deles, pelo menos) e trajando as armaduras de heróis da antiguidade (alguns deles considerados até mesmo míticos), não é exagero dizer que a beleza desta mulher é divina. Alta e femininamente musculosa, cabelos negros ondulantes, olhos azuis, usando uma armadura e braceletes dourados e prateados com motivos helênicos, um elmo com crina escarlate e uma capa vermelha presa aos ombros por um broche incrustado com a imagem de um cavalo alado: Esta é Wonder Amazon.

Quando o detetive perguntou ao médico se ele poderia levar uma amiga, o legista nunca imaginaria que esta amiga seria a heroína mais famosa de Boston.

“Wonder Amazon está certa. Eu comparei a imagem do círculo com imagens no google e comprovei isso também.” Confirma o Dr. Miller.

“Então eles devem ter conjurado um demônio e não devem ter conseguido controlá-lo.” Sugere Richard.

“Humm… talvez. Eu tenho que pesquisar melhor sobre estes símbolos, doutor. Tenho acesso a alguns tomos bastante antigos.” Wonder Amazon tem experiência em lidar com magia e sabe que, em se tratando de magia negra, quase sempre nada é o que parece ser. “Você poderia me fazer uma cópia dele?”

“Claro.” O médico liga a impressora e começa a fazer a cópia.

A super-heroína, de pé ao lado do legista sentado em frente ao computador, observa atentamente à passagem das fotografias tiradas da cena do crime na tela do computador. Seus dedos, capazes de erguer um caminhão com facilidade, tamborilam suavemente na mesa.

“A carne das vítimas foi rasgada… um tigre (um grande tigre) talvez tivesse força para tal. E olhe este ponto aqui.” Ela aponta na tela. “Apesar de toda a neve ao redor, nesta parte o solo está bem visível. Mesmo o sangue quente recém derramado não seria suficiente para derretê-la tão rapidamente.”

“Você tem razão. Eu não tinha notado isso e, agora que você mencionou, há realmente queimaduras nas poucas áreas de pele remanescentes, mas eu pensei que fossem queimaduras pelo frio.”

“Dr. Miller..”

“Pode me chamar de Greg, detetive.”

“Ok. Greg, e quando a análise do DNA estará pronta para a identificação?”

“Em algumas semanas.”

“Não temos tempo a perder. Mande o DNA das vítimas e os outros materiais da cena para a análise. Enquanto isso, eu e Richard procuramos pistas e você nos deixa a par das novidades.”

É difícil não obedecer ao comando de uma mulher como esta pensa o médico.

“Claro, claro que sim, Wonder Amazon.” Ele lhe dá o papel com a cópia do círculo.

“Ótimo.” A heroína se dirige à janela e a abre. Um vento frio e pequenos flocos de neve entram na sala e ela coloca seu pé esquerdo no batente. Ela toca seu broche fala algo em grego. Um segundo depois, um fantástico cavalo branco alado está voando do lado de fora esperando por sua amazona. “Tenho que ir.” Ela se vira, dá um breve sorriso, depois monta em seu Pegasus e ganha os céus.

Ela realmente tem estilo.

XXX

Quinze de Dezembro. 11h00 am.

Um aposento grande e mobiliado elegantemente com móveis de mogno e outras madeiras nobres. Diversos objetos de arte estão em alguns nichos no local, todos quase que invariavelmente gregos. Estantes e mais estantes de livros também chamam a atenção de alguém que entre nesta sala pela primeira vez.

Anne Teophylaktos é a bela e competente curadora do Museu de Belas Artes de Boston. Ela está em sua sala privada há algumas horas, totalmente concentrada na leitura de diversos livros de aspecto bem antigo e olhando periodicamente para um papel desdobrado colocado sobre a mesa como se tentasse comparar algo.

Alguém bate na sua porta. Ela fecha seus livros e esconde o papel em uma gaveta.

“Pode entrar.”

“Dra. Teophylaktos? A estátua acabou de chegar de Viena da Galeria Belvedere. Precisamos da sua assinatura.” Sua secretária lhe informa.

“Obrigada, Aylin. Estarei lá em um segundo. Qual é mesmo a obra?”

“É de Johan Schaller, chama-se Belerofonte matando a…”

A secretária é interrompida por uma notícia na televisão do escritório. A curadora se vira na direção do aparelho.

“Aumente por favor.” A secretária pega o controle remoto e obedece.

“… E essas são as imagens do assalto ocorrendo neste exato momento no First National Bank of Boston…Dois seguranças foram feridos pelos assaltantes, mas nenhum deles corre risco de vida…” o locutor fala enquanto na tv é mostrada a cena de uma câmera de segurança. Três assaltantes armados rendem os bancários e os clientes.

Instintivamente, a Dra. Teophylaktos já está de pé.

“Algo de errado, doutora?”

“Não. Não. Eu só lembrei que preciso ir ao banco.”

XXX

11h20 am.

“Vamos, seus idiotas, entrem logo no carro.” Um assaltante grita ordens aos seus comparsas carregando tantas sacolas cheias que muitas notas são perdidas com seus movimentos bruscos.

Os três entram no carro e disparam num ziguezaguear pelas ruas da cidade. Em uma das curvas, uma mulher trajando uma armadura de batalha de ouro e prata está parada no meio do caminho.

“É a Wonder Amazon! Essa mulher é louca! Faz alguma coisa, imbecil!” Um dos ladrões grita para o outro assaltante ao volante.

Um ladrão inteligente não enfrentaria a Wonder Amazon sem uma bazuca ou um tanque de guerra. Um ladrão sábio nunca enfrentaria a Wonder Amazon. E esses ladrões não são nem inteligentes nem muito menos sábios. O motorista acelera o máximo que pode em direção à super-heroína tentando atropelá-la.

Ela aceita a investida e corre na direção do carro dos ladrões. É como se o  veículo fosse uma bicicleta indo de encontro a um rinoceronte em carga.

A frente do carro é destruída e a inércia força os dois homens nos bancos dianteiros (sem cinto de segurança afivelados) de encontro ao vidro, o atravessando e os deixando inconscientes no solo apenas com ferimentos leves. O terceiro assaltante, ainda meio atordoado pelo golpe, saca sua arma e atira na heroína duas vezes. Uma armadura medieval ‘normal’ feita de metal não agüentaria um tiro com uma arma de fogo, mas Wonder Amazon usa a Armadura de Hypólita e os projéteis são tão eficazes quanto insetos incômodos.

“Você não devia ter feito isso!” Ela diz séria e se dirige para a porta lateral do carro.

O assaltante tenta sair pela outra porta, porém ela está emperrada com o choque.

Facilmente, ela arranca a porta do carro. O assaltante dá outro tiro que é desviado pelo bracelete da amazona.

“Claro. Como se esse outro tiro fosse mais eficaz que seus dois últimos.” E com um soco ela nocauteia o bandido.

Gregora peta Pegasus.” Ela diz em grego ao mesmo tempo em que toca em seu broche. O fabuloso animal se materializa ao comando.

Wonder Amazon o monta no momento em que consegue ver os carros de polícia se aproximando e voa.

A super-heroína, apesar de ter sua base de operações em Boston, faz parte de um grupo internacional de super-heróis, o International Super Team, IST. Liderado atualmenter por um veterano da Segunda Guerra Mundial chamado Crimson Guardian, o grupo é um dos maiores responsáveis pelo delicado equilíbrio da segurança mundial no que diz respeito aos superseres (nem todos eles de boa índole).

Quando um supervilão tenta destruir o mundo ou quando há uma invasão alienígena, é o IST que lida com isso. Wonder Amazon é uma de suas integrantes mais renomadas e efetivas, não apenas pela sua força e habilidade de combate, mas por seu carisma e liderança. Cada membro do IST tem um ponto auricular que, além funcionar como comunicador, permite o teleporte de seus agentes para os mais longínquos recantos da terra. O ponto de Wonder Amazon começa a tocar.

Srta? Há uma ligação no canal seguro.” Diz um dos operativos.

“Claro, pode passar. Obrigada.”

Wonder Amazon? Aqui é Richard.”

“Olá, detetive Alvez. Eu queria mesmo falar com você.”

Ótimo. Eu tenho informações novas sobre o assassinato no arboretum. Descobri uma senhora que diz que seus dois filhos desapareceram na noite do crime, mas o estranho é que eles não desapareceram nem próximo do Colar de Esmeraldas.”

“E como você relacionou os filhos desaparecidos desta senhora com as vítimas do crime?”

Bem, Os filhos são gêmeos e ambos tem uma marca de nascença que ela diz ter reconhecido nos corpos.”

“Supondo que eles sejam mesmo as vítimas, o que você pode me falar deles?”

Christopher e Jeremy, ambos recém-formados em direito e os melhores de suas turmas. Nasceram em 30 de Novembro e tinham 33 anos. Com muitos amigos e bem populares. E você, o que tinha a me dizer?

“Eu descobri nas minhas pesquisas que os símbolos são Goetia mesmo, são Círculos de Evocação. Servem para evocam um espírito temporariamente para este plano.”

Temporariamente?

“Sim, o espírito só pode se transfigurar permanentemente (ou seja, ser invocado) se um sacrifício específico for realizado.”

Humm… sacrifício? Corações humanos?”

“Sim, apenas para os espíritos malignos. Mas cada um requer um sacrifício diferente. Dia vinte e um próximo será o Yule, um dos Sabbaths dos celtas. Seria a época perfeita para este tipo de ritual.”

Temos menos de uma semana para impedir que isso aconteça então.”

“Sim. Outra coisa, apenas um feiticeiro ou feiticeira muito poderoso poderia tentar consumar este ritual. Eu acho que precisaremos de ajuda.”

E seus amigos seriam uma ótima ajuda.”

“Exato.”

Assim que a conversa acaba, a super-heroína pressiona seu ponto auricular novamente.

“Crimson, eu preciso da ajuda do IST. Quem você tem disponível?”

XXX

11h30 pm.

Uma mulher de beleza estonteante se teleporta para um parque. Ela tem cabelos negros e veste uma esvoaçante toga (apesar de todo o frio desta época do ano, ela não parece sentir nada). Ela segura um pequeno e assustado pássaro preso entre seus dedos.

Ela abre sua mão e a ave voa. Entoando palavras místicas ela transfigura a ave para sua forma original: um rapaz jovem com roupas de policial.

“O-o que você quer comigo? Quem é você?” O jovem trêmulo saca sua arma e aponta para a bruxa.

A outra não responde nada e aponta novamente para o rapaz que larga sua arma por conta de uma dor lancinante no antebraço direito. Um círculo com inscrições estranhas aparece gravado no membro do rapaz como se tivesse sido feito por um instrumento de marcar gado.

“Venha, criatura tripla! A serva de Hecate lhe ordena.”

Um monstro maligno surge na frente dele e o mata com um só golpe de sua pata poderosa, rasgando seu tórax por completo.

“Maldição, você não é o escolhido! Pelo menos seu coração servirá para o ritual.”

O monstro vasculha as entranhas da vítima recém-morta, abrindo sem dificuldade sua caixa torácica e deixando à mostra o coração com uma delicadeza impressionante para uma criatura tão grande. A bruxa se aproxima, com uma adaga retira o órgão e desaparece juntamente com o monstro.

Continua…